Autistas antes do autismo

Créditos: Supporting Success
Algumas questões levantadas neste texto tiveram início após uma conversa com a minha terapeuta. Ela perguntou: «Você já teve a oportunidade de pensar como seria sua vida em décadas ou mesmo séculos passados?». De fato, nunca havia pensado em algo parecido. E pensar dessa forma, ainda. Pensar em algo que não aconteceu soa estranho. Esse «se» complica minha vida. Ela continuou: «A vida de pessoas com transtornos e distúrbios mentais não era fácil. E ainda pense na sua homossexualidade. Provavelmente, você estaria internado num hospital psiquiátrico». Confesso que tive certo alívio por viver nos dias atuais. Décadas, séculos e milênios passados parecem bem difíceis e opressivos. Já li algumas resenhas do livro «Holocausto Brasileiro», da jornalista Daniela Arbex, sobre o hospício (ou manicômio) de Barbacena, no estado de Minas Gerais – pretendo adquirir esse livro algum dia. O tratamento dado a pessoas com transtornos era o pior imaginado. Certas tendências da psiquiatria e da psicologia em voga no país na primeira metade do século XX eram totalmente patologizantes. Pessoas surdas, mães solteiras, crianças autistas e jovens psicóticos permaneciam dopados com medicamentos e eram submetidos a tratamentos desumanos. Muitos morriam e eram enterrados num cemitério anexo ao hospital. É certo que esse contexto é totalmente hostil a pessoas como eu.

Contudo, minha curiosidade – e como sou curioso! – aumentou e tive o interesse em saber a vida de pessoas autistas em outros séculos. É certo que a palavra «autismo» teve seu primeiro uso pelo psiquiatra austríaco Eugen Bleuler (1857 – 1939), em 1911. Deriva do grego «αυτισμός», com o significado de «voltado a si mesmo» e designava na época algumas características de indivíduos considerados «esquizofrênicos».  O resto da história, já fazemos ideia: Leo Kanner, Hans Asperger, Lorna Wing, Ole Ivar Lovaas, Uta Frith e demais cientistas envolvidos no estudo do autismo. Mesmo que o termo seja relativamente recente, isso não significa que o autismo seja algo contemporâneo. Sua existência é antiga, mas nossos conhecimentos sobre esse transtorno são parcos e atuais. O autismo envolve uma série de mecanismos complexos que regulam o desenvolvimento do cérebro, dos quais pouco se sabe. E ainda muitas questões permanecem sem resposta. Como a genética contribuiu para a existência do autismo? Como o ambiente interferiu no seu surgimento? Qual seria a vantagem dessa mutação? Enfim...

É provável que o olhar sobre as pessoas autistas dependa da cultura e da época. Conheço casos de autistas adultos que viveram em comunidades rurais e de difícil acesso e foram tratados como possessos ou exóticos. A compreensão e a tolerância com as condições da mente que saíam do normal ou comum eram bem menores. Já comentei vagamente sobre isso noutra postagem. Por outro lado, a sociedade atual é muito confusa e complexa. Quando meus avós paternos conversavam sobre a infância que tiveram, suas palavras remetiam a um mundo mais tranquilo, com trabalho estável e com muita rotina, o que para uma autista não seria nada ruim. 

A Alemanha também pode nos dar algumas pistas. Numa sociedade governada por políticas de eugenia, os nazistas esterilizavam e matavam pessoas com problemas mentais e desviantes sociais. Foi o programa Aktion T4. Três mil e quinhentas pessoas autistas, de crianças a adultos, foram assassinadas na Alemanha e na Polônia, entre vinte de janeiro de 1940 a dezembro 1944. As mortes ocorreram das mais variadas formas: câmaras de gás, injeção letal, fome, tiro etc. Em pleno regime nazista, Hans Asperger (1906 – 1980), ele mesmo austríaco, defendeu com paixão o valor social das pessoas autistas:

Estamos convencidos, então, que as pessoas autistas têm o seu lugar no organismo da comunidade social. Eles desempenham bem seus papéis, talvez melhor do que qualquer outra pessoa poderia, e estamos a falar de pessoas que, quando crianças, tinham as maiores dificuldades e causaram preocupações incalculáveis aos seus cuidadores. [1]

Incrível o papel que o professor Hans Asperger teve na humanização dos autistas, embora não pudesse fazer muita coisa. 

Bem, ainda estou a realizar minhas pesquisas. Pretendo continuar essa discussão noutro momento e trazer novidades. 

Nota:

[1] Tradução inglesa. "We are convinced, then, that autistic people have their place in the organism of the social community. They fulfil their role well, perhaps better than anyone else could, and we are talking of people who as children had the greatest difficulties and caused untold worries to their care-givers."


Referências:

AUTISM_MEMORIAL. 3,500 Aktion T4 Victims. Disponível em http://autism-memorial.livejournal.com/38663.html (acesso em 5 de fevereiro de 2015)

BRADSHAW, Stephen. Asperger's Syndrome – That Explains Everything: Strategies for EDUCATION, LIFE and Just About EVERYTHING ELSE. Londres: Jessica Kingsley Publishers, 2013, p. 45. Disponível no Google Books 

COQUETTI, Sillene. Livro Holocausto Brasileiro é lançado na reunião da Comissão da Verdade. Disponível em http://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=337128 (acesso em 5 de fevereiro de 2015)

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