Victor de Aveyron, a criança selvagem

Victor de l'Aveyron (c.1788 – 1828)
No fim do século XVIII um estranho menino surgiu nos bosques franceses, próximos ao povoado de Saint-Sernin (sul da França). Andava de forma ereta, aparentava ter entre 12 ou 13 anos, não falava, não usava vestimentas e seu corpo estava marcado por algumas cicatrizes e feridas. Talvez por viver próximo aos bosques, as pessoas da época acreditavam que o menino havia crescido fora da sociedade. Contudo, os médicos que o examinaram acreditavam que o seu jeito peculiar poderia ser de nascença. Talvez por isso, a criança em questão estivesse a viver como selvagem. Batizado com o nome de Victor, ele carecia de higiene pessoal, realizava suas necessidades fisiológicas onde e quando lhe desejasse. Levantou-se a hipótese de Victor ter ficado muito tempo fora da civilização e, dessa forma, não ter desenvolvido outros hábitos sociais pela simples falta de oportunidade.

Pesquisadores e estudiosos em geral, entre eles a professora e psicóloga alemã Uta Frith, levantaram a hipótese de Victor ter sido um menino autista. Alguns argumentos são favoráveis: Victor apresentava mudanças repentinas de humor, desarranjo mental, briquismo, incessante «balançar para frente e para trás», estereotipias e movimentos musculares espasmódicos. Além disso, ele não era completamente isolado, já que demonstrava afeição para as pessoas que eram generosas com ele. 

Seus afetos reduziam-se a um grupo seleto de pessoas, entre eles seu cuidador, com quem tinha uma expressão de necessidade. Ele o seguia, pois seu tutor lhe alimentava e cuidava de suas necessidades. Não aparentava ser treinável para etiquetas. Negava-se a usar roupas e rasgava-as quando lhes punham. Nenhum pai ou mãe o reclamou. 

De acordo com o cirurgião e pesquisador francês Serge Aroles e seus estudos sobre o assunto, praticamente todos os casos de crianças selvagens na Europa são falsos e Victor de Aveyron não era uma «criança-besta». Suas cicatrizes seriam resultado de um abuso físico violento. Muitos meninos e meninas que apresentavam algum tipo de problema ou transtorno eram rejeitados por seus familiares quando essas características começavam a aparecer. A crença popular de que essas crianças eram sinal de castigo divino à família ou mesmo a encarnação de espíritos malignos ainda fazia parte do imaginário europeu. O conceito de inclusão era inexistente. É inconcebível que uma criança, pelo menos até a idade de cinco ou seis anos, sobreviva por conta própria, em estado selvagem, nas temperadas florestas europeias (hoje, praticamente devastadas). Esses e outros pontos que se encontram em discussão nos levam à hipótese de que Victor foi encontrado naquela condição justamente por possuir algum grau de autismo e não que tenha adquirido o problema por ter sido abandonado ou negligenciado.


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Nota: A história de Victor foi dramatizada no filme L'enfant sauvage («O Garoto Selvagem», no Brasil; «O Menino Selvagem», em Portugal), no ano de 1970.

Referências:

AROLES, Serge. L'Enigme des Enfants-loups. Paris, Éditions Publibook, 2007. 306p. ("O Enigma das Crianças-Lobo", numa tradução livre). Trechos do livro disponível no Google Books em http://books.google.com.br/books/about/L_%C3%A9nigme_des_enfants_loups.html?id=J-fjWToCMo0C&redir_esc=y (acesso em 27 de outubro de 2014).

DAWSON, Jill. "Interview in The Big Issue on Wild Boy". Disponível em http://jilldawson.co.uk/interview-in-the-big-issue-on-wild-boy/ (acesso em 27 de outubro de 2014).

SILVA, Ana Beatriz B; GAIATO, Mayra Bonifácio; REVELES, Leandro Tadeu. Mundo Singular: entenda o autismo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 164-166